hrthfhgDefenestração
Por: Aline A.
31 de Outubro de 2016

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Literatura

Defenestração

 
Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o
nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias
em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia
Negra.
Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos.
Aonde eles chegassem, tudo se complicaria.
– Os hermeneutas estão chegando!
– lh, agora é que ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades
produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a
população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas
recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido
oculto.
– Alô…
– O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
– Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado,
nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas.
Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até
um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussufrar no ouvido
das mulheres:
– Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas
defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez
mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os
documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração…” Era uma palavra
cheia de implicações. 
Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
– Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada.
Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me
deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo
feminino.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este
só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte.
Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém
ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício
como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
– Les defenestrations. Devem ser proibidas.
– Sim; monsieur le Ministre.
– São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
– Sim, monsieur le Ministre.
– Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido.
Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima
devem ter um cartaz: “Interdit de deffnestrer”. Os transgressores serão
multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios
defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no
homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de
defenestradores latentes.
– É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor…
– Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a
mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela
janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a
arquitetura moderna,
com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma
reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suite matrimonial no 17o andar.
– Querida…
– Mmmm?
– Há uma coisa que eu preciso lhe dizer…
– Fala, amor.
– Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
– Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo! Uma multidão cerca
o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e
balbucia:
– Fui defenestrado…
Alguém comenta:- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da
máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair porque resisti.
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Aline A.
Rio de Janeiro / RJ
Aline A.
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Literatura - Tudo
Graduação: Licenciatura e Bacharelado em Letras (Universidade Gama Filho)
Vendo aulas de Português, Literatura
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