Bakhtin, Machado e a memória escravocrata na favela do Moinh
Por: Keyth P.
16 de Setembro de 2017

Bakhtin, Machado e a memória escravocrata na favela do Moinh

Letras

Neste artigo apresento uma análise da memória escravocrata encontrada na favela do Moinho, por meio do método de análise da Onomástica que é a ciência dos nomes. Por meio da literatura trago um registro histórico que atesta a tese da memória que parte da escravidão. Todos os dados coletados se deram na pesquisa de campo e foram gravados.

Considerações Bakhtinianas1 na Onomástica por meio da análise da Coronímia ou nomes de estabelecimentos comerciais na favela do “Moinho”.

Resumo: Análise de topônimos de estabelecimentos comerciais na favela do Moinho.

Palavras-chave: topônimo, realidade social imediata, auditório social, enunciado, dialogia, grande tempo, ato ético.

Introdução

Seguindo a proposta do curso ministrado pela Professora Doutora Patrícia de  J. Carvalhinhos “Toponímia Geral e do Brasil II”, durante o segundo semestre da Graduação em Letras de 2012, este trabalho tem como objetivo levantar questões pertinentes para uma possível consideração da Teoriade Bakhtin e Volochinov, dentro do método de análise da ciência Onomástica especificamente por meio da Toponímia e mais especificamente Coronímia, por meio de nomes de estabelecimentos comerciais, neste caso da Favela do Moinho. Esta proposta se pauta na consideração de Sheila V. Camargo e Flávia Silva M. Ferraz na obra “Modelos de Análise Linguística”, no texto intitulado “A divulgação científica: uma abordagem dialógica do enunciado”, em que as autoras ao referirem-se à Teoria Bakhtiniana a definirão da seguinte maneira:

“Nessa direção, compreendemos que as noções Bakhtinianas (como cronotopo, polifonia e carnavalização e etc.) são decorrentes de uma grande atenção à especificidade das obras analisadas, e não de um conjunto de noções prévias a serem aplicadas. Sem perdermos essa especificidade podemos identificar na obra de Bakhtin o esboço de um programa de pesquisa, designado com nome de metalinguística e que tem por objeto de estudo as relações dialógicas e a palavra bivocal.”. (GRILO & FERRAZ, 2009, p.135).

Da mesma maneira, tendo como objeto topônimos de estabelecimentos comerciais na referida favela, este trabalho cotejará a teoria Bakhtiniana de linguagem para o entendimento destas formações.

1.       Bar do “Pega Bebo” e seus doissignificados

1.1  – Breve histórico do bar do “Pega  Bebo” e seu primeiro significado

O bar do “Pega Bebo” encontra-se na rua principal da favela do Moinho, que se localiza sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, em Campos Elísios, região central de São Paulo. Segundo  os dados coletados denomina-se bar do “Pega Bebo”, pois o proprietário marido da dona Neide, entrevistada, ao nomear o seu estabelecimento considerou o nome de um bar que existia  no “Norte”, no tempo em que ali viviam. Trata-se de um cômodo de sua casa que possui uma janela utilizada como balcão de vendas. Da janela balcão é possível visualizar a continuação dos demais cômodos da casa de alvenaria. Na parte externa da casa, acima da janela há uma fachada com o nome do bar escrito em letras grandes e vermelhas. Segundo a moradora e proprietária dona Neide, não houve consenso do casal quanto a nomeação do estabelecimento, segundo ela, o atual nome é “ridículo”, porém a opinião do marido foi considerada no final, como se vê no trecho de sua entrevista:

Neide: “Pega Bebo” porque é um nome dado, e porque pegou mesmo e é um ponto de referência mesmo agora. Como eu falei não gostei, mas agora...

Entrevistadora: Por que que você não gostou do nome?

Neide: Ah não sei, esse nome aí ridículo né? Pega Bebo. Eu queria “Bar do São Paulino”.

Entrevistadora: Você brigou com seu marido por causa disso né? Mas aí prevaleceu ele.

Neide:Ahan. Entrevistadora:Por quê?

Neide: Ah depois, “Ah Neide, isso aí é coisa do Norte, barzinho pequeno “Pega Bebo”.

Entrevistadora: E agora todo mundo já conhece como “Pega Bebo”?

Neide: Já conhece. É um ponto de referência aqui, é o “Pega Bebo”.

Entrevistadora: E aí se você vai comprar alguma coisa lá fora, você indica que é pra levar pro bar do “Pega Bebo”.

Neide: Para o “Bar do Pega Bebo”.

Entrevistadora: E aí você fala que rua para eles seguir...

Neide: Não, eu falo que é a principal aqui do Moinho, “Bar do Pega Bebo”, porque antes era , a referência era o bar do... Ai eu esqueci o nome do rapaz aqui. Então eu falo agora para os meninos, ficou esse nome aqui, a referência.

Entrevistadora: Vem pra cá pela Rua Principal.i

É necessário colocar, que para a análise específica deste topônimo bar do “Pega Bebo”, considerou-se a nomenclatura trazida por Dick para os “Dirrematotopônimos” que são os  topônimos constituídos por frases ou enunciados linguísticos. Segundo Dick, tais topônimos podem ser:

“(...) interpretados como verdadeiros sintagmas linguísticos, ou conjuntos expressivos, do ponto de vista semântico(...)”. (DICK, 1990, p. 29)

Segundo Bakhtin a enunciação não deve ser vista apenas como uma enunciação verbal abstrata, visão esta contida na tradição lógico-pedagógica e, segundo Faraco, adotada em certa medida como base para a linguística, como se vê:

“A autonomia do objeto, se de um lado, criou condições para o estabelecimento de uma tradição epistemologicamente muito produtiva; de outro, reiterou a eliminação dos falantes e do vivido de seu espaço teórico, ruptura até hoje sem solução teórica adequada, a sugerir– ousamos dizer – a partir de sua extensão mais que milenar (já que o corte está entre nós desde os gregos), que se trata, de fato, de uma aporia: O que temos parecem ser dois blocos analíticos distintos e aparentemente irreconciliáveis elaborados em resposta à mesma  grande questão em torno da realidade da linguagem.”. (FARACO, 2001, pg.2)

Contudo, a linhagem considerada para esta análise, segundo Faraco, possui contornos desde o século XIX:

“Essa percepção, expressa de início (e até paradoxalmente) pelos filósofos idealistas alemães no início do século XIX, voltará em Marx com a ênfase nas relações no interior do quadro dos modos de produção; e também nos grandes romances de Dostoiévski, como senso estético da realidade multivocal e dialógica do existir humano; do que, por sua vez, encontramos ecos na crítica de Nietzsche às filosofias essencialistas”. (FARACO, 2001, pg.7)

É sabido que Bakhtin baseia o seu método na afirmação de Marx, quando este diz que o homem é um ser social:

"Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário,  o  seu ser  social que  lhe  determina  a   consciência". (Karl Marx)

O viés Bakhtiniano de análise da linguagem entende o enunciado ou a expressão, palavras utilizadas por Dick em sua definição de “Dirrematotopônimos” , como aqueles que são parte determinante da construção da linguagem no indivíduo, o qual a partir da sua realidade social imediata, esta por sua vez externa, construiráa sua expressão. A esse respeito, Volochinov e Bakhtin teceram as seguintes ponderações:

“Além disso, o centro organizador e formador não se situa no interior, mas no exterior. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas ao contrário, é a expressão que organiza a    atividade    mental,    que    a     modela     e     determina     sua     orientação.    Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata”. (BAKHTIN, 1929,pg.116)

Disto se extrai que “a situação social imediata” é parte determinante da construção da linguagem no indivíduo, que construirá a sua expressão a partir do enunciado proposto. Cabe colocar que o termo “expressão-enunciação” é entendido neste trabalho como enunciado. Entendendo-se, pois, o Topônimo “Pega Bebo” como constituído a partir de um enunciado, favela do Moinho, pode-se observar que a realidade social "anterior" de Dona Neide e seu marido determinou a realidade social imediata no ato de nomeação de seu estabelecimento. Isso também se justifica na teoria Bakhtiniana, pois seria possível considerar que então, o fator determinante para a nomeação do estabelecimento em São Paulo, devesse ser o fato de se encontrarem em São Paulo e em um novo contexto de vida, porém a realidade social “anterior” determinou a realidade social imediata neste caso; para o entendimento desta consideração cabe-nos a luz de Bakhtin:

“O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo tem um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações e etc. Quanto mais aculturado for o indivíduo mais o auditório em questão se aproximará do auditório médio da criação ideológica, mas em todo caso o interlocutor ideal não  pode  ultrapassar  as  fronteiras  de  uma  classe  e  de  uma  época  bem  definida.   Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande,  na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.”.(BAKHTIN,1929, pg.117)

Pode-se inferir que neste caso, houve o desejo por parte do marido da dona Neide em homenagear a sua realidade social “anterior”, ou ainda apenas de aproximar-se desta, por meio da transplantação2 do nome do estabelecimento que conhecia anteriormente e que o aproxima das “coisas do Norte”.

1.2  – Bar do “Pega Bebo” e seu segundo significado

Um segundo entrevistado, Jean, possuidor de um salão de cabeleireiro, morador da favela do Moinho, também deu o seu parecer quanto ao significado do topônimo “Pega Bebo”. Segue trecho de sua entrevista:

“Entrevistadora: E ali tem um bar que chama de Bar do “Pega Bebo”, você sabe por que que chama “Pega Bebo?”.

Jean: Ah eu conheço aí como esse bar de “Pega Bebo”. Vai muito, o pessoal fala: “Ah vou bom e volto bebo”. E aí ficou esse nome aí.

Entrevistadora: Pega bebo. Entendi. Colocaram esse nome.

Jean: É.”.

Como é possível observar, a realidade social imediata do morador Jean, não possui para o seu diálogo ou dialogia com o topônimo “Pega Bebo”, o sentido que possui para os proprietários do estabelecimento. Essa observação pode parecer óbvia, mas este trabalho considera que um nome precisa ser contemplado em todos os seus significados e atribuições feitas pelos nomeadores, para então poder ser devidamente descrito. O ato de nomeação não partiu do morador, que não é o proprietário, porém como participante do contexto social comum entre o os demais moradores e, portanto, sendo parte do enunciado em que o estabelecimento se encontra - favela do Moinho e bar que atende aos moradores - observa-se um processo de significação própria ao nome existente por parte dos moradores, que sem o conhecimento empírico da real motivação da nomeação por parte dos proprietários, apropriam-se da expressão e lhe atribuem uma nova significação, bem como uma nova motivação para este significado. Para esta consideração, cabe-nos a luz de Grillo e Ferraz:

“A teoria decorrente da obra de Bakhtin e seu Círculo concebe o enunciado e seus gêneros sob o ponto de vista das relações dialógicas que os constituem e que estão na base dos sentidos por eles produzidos. [...] não constituem um conjunto de categorias prévias e prontas para serem aplicados na análise de textos e discursos, com a finalidade de interpretá-los e compreender a sua forma de produção e sentidos. E, em segundo lugar, os textos e discursos, ao serem concebidos como “objetos falantes”, uma vez que emergem de sujeitos autores (que falam), são abordados de forma a fazer emergir seu modo próprio de produção de sentidos.”. “Mas ambos os designativos ultrapassam, em muito, a conceituação teórica que lhes é atribuída, tornando-se, nas Ciências Humanas, fontes de conhecimento tão excelentes quanto as melhores evidências documentais. São, por assim dizer, verdadeiros registros do cotidiano, manifestado nas atitudes e posturas sociais que, em certas cisrcunstâncias, a não ser através deles, escaparia às gerações futuras.”.

Ou seja, considerando-se o Topônimo como criado a partir de um “enunciado”, com sentidos semânticos distintos, pode-se observar e atestar que para os moradores, o “gênero” “Topônimo”, neste caso específico o Topônimo transparente “Pega Bebo” está à mercê de seus próprios modelos de produção de sentidos, ainda que se possa observar a coexistência dos dois sentidos vivendo harmoniosamente entre os proprietários e os moradores.

2.  A “Banquinha da Graça”

Dick em suas definições de topônimos discorrerá a respeito dos “Axiotopônimos”, os quais se relacionam aos “títulos e dignidade de que se fazem acompanhar os nomes próprios  individuais” (DICK, 1990, pg. 33). Observou-se na Favela do Moinho que todos os corônimos ou nomes de pequenos estabelecimentos comerciais, com exceção do bar do “Pega Bebo”, enquadram-se nesta classificação. À tona, trazemos o caso da “Banquinha da Graça”:

Entrevistadora: A gente está aqui com a Rosângela e a gente vai ouvir dela o nome do estabelecimento que ela trabalha.

Rosângela: Banquinha da Graça.

Entrevistadora: Por que que chama banquinha da Graça?

Rosângela: Porque o nome da minha mãe é Graça então todo mundo ficou conhecido como Banquinha da Graça.

A “Banquinha da Graça”, localiza-se na entrada da favela do Moinho, em frente à passagem da linha 8 Diamante da CPTM, entre as estações Júlio Prestes e Barra Funda. Os trilhos da linha de trem encontram-se a céu aberto e é necessário cruzá-los para  a chegada à “rua principal”, citada  por dona Neide e apenas por ela. Trata-se de uma via, que é referida como principal por ser a primeira após os trilhos de trem. A favela do Moinho não possui intervenção do Governo para o processo de nomeação das ruas e seu complexo consiste em duas vias paralelas, sendo a primeira esta referida por dona Neide como “principal” e a segunda não possui nomeação. Os cruzamentos entre estas duas vias paralelas também não possuem nomeação. Os demais moradores abordados, não reconhecem o nome “principal” para esta via citada e por isto não nos deteremos na análise deste topônimo citado por Dona Neide e que cumpre a função de localizar o seu estabelecimento para os fornecedores.

Além da “Banquinha da Graça”, que assim é referida em homenagem a sua proprietária, este processo é observável no Salão do Jean:

Entrevistadora: Agora a gente tá aqui com o Jean, o Jean tem um Salão de Cabeleireiro aqui. Jean como é que chama o seu estabelecimento?

Jean: Jean Cabeleireiros.

Entrevistadora: E aí esse nome, por quê?

Jean: Ah porque foi o único que eu encontrei para colocar.

Entrevistadora: O seu nome não é?

Jean: É o meu nome. Não encontrei outro nome pra por, então eu resolvi colocar esse mesmo. E combinou.

Entrevistadora: E todo mundo que conhece, fala?

Jean: Todo mundo gosta né?

Entrevistadora: Vamos lá no Salão do Jean!

Jean: Que eu só trabalho aqui de sábado e domingo né? De final de semana...

Entrevistadora: Aí aqui bomba.

Jean: De domingo, sábado e domingo.

Este trabalho não quer afirmar que este é o processo que se dá em todas as favelas, apenas observou-se que nesta favela específica, Moinho, talvez pelo seu tamanho reduzido, o processo de nomeação ocorre desta maneira. Além destes dois exemplos citados encontrou-se estabelecimentos nomeados como “Bar da Sônia”, “Bar da Maria” e “Bar do Ademilson”, tais topônimos, no entanto não puderam pautar-se na gravação como os dois primeiros exemplos, pois em todos os casos os moradores preferiram não gravar entrevista. Todos estes “bares” remetem a pequenos estabelecimentos onde se comercializam cigarros, isqueiros, pães, bebidas, salgados, produtos de limpeza em geral, doces, etc.

Um exemplo que merece destaque é o da “Cantina do Irmão”, neste caso a entrevista também não foi possível, porém o estabelecimento possui este nome, pois segundo o funcionário, o proprietário do estabelecimento é evangélico. Pode-se observar o estabelecimento de igrejas evangélicas na favela do Moinho. Considera-se que se trata de um Axiotopônimo, pois a referência se dá em homenagem ao proprietário, a expressão não se refere ao nome próprio do morador, mas sim a sua religião, o que nos permite inferir que se trata de um Axiotopônimo com sentido de Hierotopônimo, que são os Topônimos surgidos para homenagear o Rei, a Igreja, etc., com referência aos costumes dos membros de igrejas evangélicas que se denominam entre si como “irmãos”.

Considerações finais

Pelo exposto, cabe colocar aquilo que Carvalhinhos3 nos apresenta quanto a formação da Toponímia Brasileira; aponta para a heterogeneidade da Toponímia Colonial Brasileira  apresentando três estratos básicos de formação: português, indígena e africano, suas ideias, ideologias, cultura, interesses materiais e, no caso dos africanos e franceses, até mesmo referência ao trabalho efetuado surgem como motivações para o aparecimento de nomes como “cacimba” (poço) e “biqueterie” (olaria). Historicamente e mais recentemente observou-se o movimento migratório dos habitantes do Nordeste e Norte brasileiro para o Sudeste e mais especificamentepara São Paulo.

Dick ao comparar os designativos “topônimo” e “antropônimo” dirá:

“Mas ambos os designativos ultrapassam, em muito, a conceituação teórica que lhes é atribuída, tornando-se, nas Ciências Humanas, fontes de conhecimento tão excelentes quanto as melhores evidências documentais. São, por assim dizer, verdadeiros registros do cotidiano, manifestado nas atitudes e posturas sociais que, em certas cisrcunstâncias, a não ser através deles, escaparia às gerações futuras.”. (DICK, 1990, pg. 178)

A Onomástica com todas as suas “ramificações” nos oferece por meio do nome em qualquer uma de suas formas, além de um vasto campo de pesquisa linguística, o apontamento para a compreensão da história de um povo em qualquer espaço de tempo em que o nome observado se encontre. Isto se atesta por meio dos trabalhos de Dick e Carvalhinhos, pois, provado está, pela própria história,as suas considerações sobre a formação Toponímica Brasileira.

Quanto ao Topônimo “Pega Bebo”, este trabalho sugere como registro histórico um trecho do conto “Pai Contra Mãe” de Machado de Assis:

“A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dois vinténs do senhor que eles tiveram com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas,   à   venda,   na   porta   das   lojas.   Mas   não   cuidemos   de   máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado”.

O texto de Machado de Assis dispensa comentários sobre os valores culturais em relação à figura do bêbado na época da escravidão e nos apresenta os objetos pelos quais ao fugir, os escravos eram “pegados”. “Pega Bebo”, neste trabalho, é um topônimo considerado minimamente explicado por meio do conto de Machado de Assis – se considerarmos o imaginário histórico-cultural que se perpetua com o tempo – algo que Maria Bernadete Fernandes de Oliveira trará à tona em suas considerações em relação à Teoria Bakhtiniana:

“Essa colocação leva a um outro elemento essencial à noção de compreensão para Bakhtin (2003, p. 359), que diz respeito ao fato de que a compreensão não deveria cingir-se aos limites da atualidade, pois “ao avaliar seu dia-a-dia, a sua atualidade, as pessoas tendem sempre a cometer erros [...] tudo o que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele” (BAKHTIN, 2003, p. 363). Em outras palavras, o autor chama a atenção para a necessidade de que a análise dos enunciados concretos não seja descolada de um contexto mais amplo, ou melhor, que não se cinja ao pequeno tempo, o tempo da atualidade, o passado imediato e o futuro previsível, mas que se admita a possibilidade de ser inserida no “grande tempo”, local privilegiado do diálogo infinito e inacabável, no qual nenhum sentido morre”. “No bojo da discussão que Bakhtin trava sobre a relação entre o mundo da cultura e o mundo da vida, destaca-se o conceito de ato ético, aquele ato resultante de ações realizadas pelos sujeitos, indivíduos, em sua existência concreta, carregado de valores, de avaliações, de posicionamentos. O ato ético implica ação e ao mesmo tempo em que participa, integra o ser que o realiza e é através dele que o sujeito se reconhece e é reconhecido. Daí por que o mundo da cultura, no qual conhecimentos são constituídos, necessita, para compreender o humano no discurso, aproximar-se do mundo da vida, na verdade um conjunto ininterrupto e inacabado de atos éticos, tomando-os como ponto de partida para acessar as singularidades das ações humanas, que, por serem permeadas de valores, implicam uma não-neutralidade desses atos.”. (OLIVEIRA, 2008, pg. 20)

O conto de Machado de Assis tratará das relações de poder entre o direito entre uma mulher negra e um homem branco de terem seus filhos. O branco, capitão do mato “pegará” a negra no  final do conto. Este trabalho, porém, não intenta problematizar as questões sociais existentes no “enunciado” Favela do Moinho, considera apenas o conhecimento empírico de qualquer cidadão brasileiro sobre a sua própria história e consequências sociais às populações oriundas do Norte e Nordeste, sobretudo, na cidade de São Paulo. Desta maneira tenta demonstrar o valor da Ciência Onomástica para o entendimento do mundo e do homem e se justifica por fim, com um último trecho da última autora referida e suas ponderações sobre o conceito de “ato ético”:

“No bojo da discussão que Bakhtin trava sobre a relação entre o mundo da cultura e o mundo da vida, destaca-se o conceito de ato ético, aquele ato resultante de ações realizadas pelos sujeitos, indivíduos, em sua existência concreta, carregado de valores, de avaliações, de posicionamentos. O ato ético implica ação e ao mesmo tempo em que participa, integra o ser que o realiza e é através dele que o sujeito se reconhece e é reconhecido. Daí por que o mundo da cultura, no qual conhecimentos são constituídos, necessita, para compreender o humano no discurso, aproximar-se do mundo da vida, na verdade um conjunto ininterrupto e inacabado de atos éticos, tomando-os como ponto de partida para acessar as  singularidades das ações humanas, que, por serem permeadas de valores, implicam uma não-neutralidade desses atos.”. (OLIVEIRA, 2008, pg.13)

A partir da análise é possível perceber o valor da linguística a partir de um viés Bakhtiniano, pois considera o signo não como algo abstrato, mas como a expressão em que duas pessoas representam e compreendem as ideias, bem como o valor da onomástica como ciência de investigação da história humana. A literatura, obviamente possui o seu valor inconstestável como registro histórico e o mais cruel é concluir que as pessoas da favela do Moinho carregam na memória histórica dentro do "grande tempo" de Bakhtin que um bêbado tem que ser pegado. 

 

Referências

 

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV) (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 7 ed. São Paulo Hucitec, 1995.

 

 

                . Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,2003

 

 

CARVALHINHOS, P.J./ ANTUNES, A.M. Toponímia Brasileira, Origens Históricas. Cadernos do CNLF, Cifefil, Rio de Janeiro, 2007, PP. 141-158.

 

 

DICK, Maria Vicentina de P. do Amaral. Toponímia e Antroponímia no Brasil. Coletânea de estudos. 2 ed., S. Paulo, Serviços de Arte Gráfica da FFLCH/USP, 1990.

 

 

FARACO, C.A. Pesquisa aplicada em linguagem: alguns desafios para o novo milênio. In: DELTA, 17: Especial, 2001, p. 1-9.

 

 

GRILO, S.V.C & FERRAZ F.S.M, A divulgação científica: uma abordagem dialógica doenunciado. In: GIL, B.D., CARDOSO, E.A., CONDÉ, V.G. Modelos de análise linguística. São Paulo: Contexto,2009.

 

 

MACHADO,A.Paicontramãe.Textoprovenientede:ABibliotecaVirtualdoEstu- dante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br . A Escola do Futuro da Univer- sidadedeSãoPaulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

 

 

OLIVEIRA, M.B.F. Compreendendo e interpretando práticas discursivas: (re) visitando orientações bakhtinianas. In: OLIVEIRA, M.B., CASADO, M.P., SILVA, M. Linguagem e práticas sociais: ensaios e pesquisas. RN: Edufrn, 2008, pg. 11-23.

 

 

 

 

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