Revolução, Miscigenação e Cultura Afro-brasileira
Por: Keyth P.
30 de Novembro de 2017

Revolução, Miscigenação e Cultura Afro-brasileira

Literatura

Essa é uma análise teórica de três obras de Jorge Amado. Revolução, miscigenação e cultura afro-brasileira são temas tratados nessa análise.

Introdução

Esse trabalho parte da análise de três obras de Jorge Amado: “O País do Carnaval”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “Tenda dos Milagres”. Por meio de exemplos retirados dos escritos de Jorge Amado, será feito um diálogo com o texto de Roberto Damatta e suas considerações sobre a vida e obra de Amado em “Do país do carnaval à carnavalização: o escritor e dois brasis”, a fim de responder a questão de que se qualidade da obra Amadiana está ou não atrelada às fases de sua vida, como o rompimento com o estalinismo do PCB, bem como a ideia de revolução. Além disso, se buscará também por meio de exemplos Amadianos trazer à tona o debate sobre miscigenação, racismo e etnocídio. Por fim, será apresentado como Jorge Amado desenvolve e expõe as religiões de matriz africana, por meio dos enredos e também mediante os acontecimentos de suas personagens, concluindo com algumas considerações sobre como Jorge Amado trabalha um dos grandes temas universais da literatura: “moralidade”.

1. Sobre as considerações de Damatta, estalinismo e revolução

Roberto Damatta, em seu texto, apresenta algumas considerações sobre a vida e trajetória de Jorge Amado que merecem atenção. Será feito um diálogo com a sua posição de que a obra de Jorge Amado teria uma segunda fase superior, expressa pela personagem “Dona Flor” em que se encontraria a felicidade e sabedoria, enquanto brasileiros, “quando nossa imagem carnavalesca corresponder a uma prática menos arrogante e mais igualitária como Estado-nacional. Quando finalmente somarmos os ideais burgueses da liberdade, da fraternidade e, sobretudo da igualdade, com o nosso criativo hibridismo institucional, acreditando, - como parece ser o caso de Jorge Amado – piamente nos dois”. (DaMatta, 1995)

Como é possível notar na transcrição do texto, DaMatta afirma que Jorge Amado acredita em ideais burgueses. Essa é uma contradição. Sabe-se que as Revoluções burguesas foram de fato revoluções, e que, em seu tempo, retratavam um sentimento de época. As Revoluções Industriais não fizeram menos do que romper com o feudalismo. Entretanto, como também é possível notar, esses ideais primeiros perderam seu espaço de diretriz e o desenvolvimento pré-capitalista se mostrou uma verdadeira tragédia.

Não é apenas por isso que é contraditório dizer que Jorge Amado acredita em ideais burgueses, mas porque claramente o escritor fez parte do Partido Comunista Brasileiro, apesar de sua filiação ao Partido ter sido tardia (1932) em relação à degeneração da Revolução de 1917, dos bolcheviques pelo estalinismo. Stalin assumiu a direção do partido bolchevique em 1924 e é sabido que a partir daí todas as conquistas dos bolcheviques retrocederam. Ou seja, Jorge Amado aliou-se ao PCB quando este já estava sob a diretriz de um partido degenerado na União Soviética. Sobre o estalinismo Trotski irá dizer:

O stalinismo, por sua vez, não é uma abstração de “ditadura”, mas uma grandiosa reação burocrática contra a ditadura proletária num país atrasado e isolado. A Revolução de Outubro aboliu os privilégios, declarou guerra à desigualdade social, substituiu a burocracia pelo autogoverno dos trabalhadores, aboliu a diplomacia secreta; esforçou-se em dar a mais completa transparência a todas as relações sociais. O stalinismo restaurou as formas mais ofensivas de privilégio, conferiu à desigualdade um caráter provocativo, sufocou com absolutismo policial a atividade espontânea das massas, fez da administração um monopólio da oligarquia do Kremlin, e regenerou o fetichismo do poder sob formas que a própria monarquia absoluta não tivera sequer coragem de sonhar. (Trotski, 2015, pg.40)

A partir dessa afirmação fica evidente que a degeneração Stalinista na União Soviética não é um mero detalhe. Conquistas como a legalização do aborto, divórcio, lavanderias públicas que deixavam a mulher livre de sua segunda jornada de trabalho, e livre para viver como bem quisesse, foram rapidamente destituídas por Stalin que reduziu o poder dos sovietes aos seus desmandos dentro do partido. Ou seja, os ideais comunistas foram todos deixados de lado e só restou os crimes de Stalin contra seus opositores, Trostki um deles.

É interessante retomar essa história porque Jorge Amado, ao descobrir os crimes de Stalin, quando esses foram revelados, rompeu com o partido. Isso evidencia que a ligação de Jorge Amado com o comunismo foi de cunho ideológico, sendo um partido degenerado a última opção para um verdadeiro marxista. Sobre a questão da mulher na revolução, é cabível a menção porque evidentemente Jorge Amado está questionando o lugar da mulher na sociedade com a personagem de Dona Flor.

Esta é uma mulher “direita”, cheia de uma moral pudica que se vê sob os encantos do ex-marido morto que retorna para o mundo dos vivos e a atormenta, deixando-a no impasse de ter ou não, dois maridos. DaMatta remete isso a uma triangularidade dessa suposta segunda fase de Jorge Amado, em que o autor teria deixado as dicotomias bem x mal, direita x esquerda e teria encontrado uma coesão em relação ao “ethos” de suas personagens, que seriam segundo DaMatta, o retrato do povo brasileiro. Vejamos como Jorge Amado retrata o comunismo em “O País do Carnaval”, livro que seria da primeira fase, dita inferior, por meio de um diálogo entre Paulo Rigger, protagonista da trama e seus demais companheiros de bar: 

- Pois eu sou comunista... – e Rigger engasgou-se com um pedaço de carne.
Jerônimo não acreditava: 
- Comunista, você? Um aristocrata? “Comigo não, violão...” 
- Mas, Rigger, o comunismo é bonito em teoria... Na prática, um fracasso. Igualdade, igualdade... Depois os operários que governam a surrar o povo... É isso o comunismo na prática. 
- Mas é exatamente por isso que eu sou comunista... O comunismo mandaria surrar os brasileiros três vezes por dia. O povo endireitava... No Brasil eu sou comunista prático. O único remédio eficaz para o brasileiro é o chicote...

Neste livro, o autor retrata a vida boemia de amigos que estudaram na faculdade juntos, que tinham uma vida estável (com raras exceções) e que por isso podiam ter momentos de lazer em bares, local onde a maior parte da narrativa se dá. Toda a estória é um rodear de teorias e possibilidades em relação a vida amorosa, de trabalho, de teoria, religião etc. das personagens. Esse excerto, é um dos momentos em que essas conversas estão acontecendo, e Paulo Rigger se declara comunista por poder assim colocar o chicote sobre os trabalhadores.

Há duas possibilidades: ou Jorge Amado está retratando um conceito errôneo de comunismo, para demonstrar como a burguesia e pequena-burguesia não entendem os princípios marxistas, ou de fato o defendia. Fato é que o estalinismo tentou colocar cabresto nos trabalhadores e toda a burocratização serviu para o retroceder o poder de decisão que anteriormente era tomado pelos trabalhadores, por meio de sua auto-organização e métodos de base, como assembleias deliberativas. Isso em escala continental na Rússia.

Seja lá qual for a intenção de Jorge Amado, a questão é que o comunismo não é igualdade. A famosa citação de Marx diz: “De cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades”. Ou seja, o comunismo é um sistema que se propõe transitar pela capacidade humana suprindo suas necessidades essenciais, que podem ser diferentes, para diferentes indivíduos. Fica óbvio, dessa maneira, que Jorge Amado está fazendo uma caricatura por meio de sua personagem que sendo aristocrata, jamais poderia ser comunista.

A questão é que uma primeira leitura, sem uma análise literária comparativa que possa inferir os diferentes modos narrativos de Jorge Amado, bem como os diferentes tipos de narradores, o seu estilo, etc. sem essa análise acaba-se por acreditar simplesmente no que a personagem está dizendo. Não há um paradigma entre dicotomia e triangularidade, pois todas as personagens são complexas. O que há é uma diferença no estilo literário entre os livros “O País do Carnaval” e “Dona Flor e seus Dois Maridos”.

No primeiro, o autor opta por uma narrativa marcada pelos diálogos, que aparecem abundantemente, e por meio da voz de suas personagens coloca todas as questões desde existenciais até políticas. É como se Jorge Amado descentralizasse a atenção de uma personagem apenas. Em Dona Flor tudo acontece por causa de Dona Flor, ao redor de Dona Flor e o grande desfecho é uma questão moral de Dona Flor. Ainda assim, Paulo Rigger também tem o seu grande final ao voltar para a Europa.

Trata-se de tipos diferentes, Paulo Rigger um aristocrata que não consegue encontrar resposta para suas questões existenciais e Dona Flor uma mulher, cozinheira e casada sob a moral monogâmica. São realidades sociais diferentes, o primeiro transita por bares, prostíbulos e cidades, a segunda vive em casa dando aulas de culinária e é incapaz de flertar sem achar que está deixando sua honra de lado. Em ambos, Jorge Amado está apresentando a realidade das personagens, a partir de suas vivências e suas crises. O lugar da mulher e sua sexualidade é um grande tema que daria um trabalho à parte.

Conclui-se que ainda que o estalinismo acredite no socialismo em um só país, o que automaticamente explicaria a obsessão de Jorge Amado por uma identidade nacional, que em grande parte é retratada por meio das religiões de matriz africana, ainda assim suas personagens são ricas e o que muda são também os tipos de narradores, ambos oniscientes intrusos, mas no primeiro caso aparecendo pouco dando lugar aos diálogos.

Quanto ao propósito político de Jorge Amado ao escrever as suas obras não nos cabe avaliar se em algum momento, algo dentro de sua obra parece uma fábula socialista. Isso porque é de fato muito raro, e também porque a arte é e deve ser livre, o que faz com que Jorge Amado e sua obra também o sejam. 

2. Miscigenação, Racismo e Etnocídio {{}} 

Para continuar no mesmo raciocínio, será apresentado a visão de Jorge Amado sobre a miscigenação em “O País do Carnaval”. Nesse livro, por meio do diálogo entre as personagens é possível notar o estereótipo da burguesia e da pequena-burguesia do “povo” que inclui negros e indígenas. O narrador onisciente intruso deixa escapar a visão preconceituosa dessas camadas. É como se essa terra de “todos os santos” tivesse como povo “seres inferiores”. Sobre os indígenas, em “O país do Carnaval”, em um diálogo entre as personagens Pedro Ticiano e Jerônimo, este afirma ser José de Alencar um mau romancista, e romancista de colégio por ter orgulho de ter sangue de índio.

Sobre a “natureza”, ao encontrar uma das personagens, o diplomata, Paulo Rigger dirá que a natureza no Brasil é maléfica, pois leva o povo à preguiça e indolência. Ou seja, Jorge Amado está denunciando tanto o racismo quanto o etnocídio. Contudo, aquilo que vem do indígena não é digno nem de ser devidamente nomeado, sendo os indígenas retratados como “pardos” e caboclos”. Já se sabe que essas nomenclaturas Amadianas fazem coro com a teoria de Gilberto Freyre, porém Jorge Amado, diferentemente de Freyre não sugere uma hierarquia entre as raças, sendo os brancos superiores.

O que Jorge Amado faz é justamente o contrário, pois para ele não há uma raça superior e esse encontro entre as ditas “raças”, sem atritos por fatores biológicos seria também um dos ápices da civilização. Isso é o que o autor chama de “mestiçagem”. A historiadora Lilia Scwharcz, ao falar sobre o Brasil mestiço de Jorge Amado dirá:


Mas é Tenda dos Milagres, com o casal central composto por um baiano e uma escandinava, que representa o exemplo mais acabado dessa interpretação autoral. O romance chega a ser didático na maneira como opõe o herói da obra, Pedro Archanjo (com sua visão positiva da miscigenação) ao professor Nilo Argolo, que acreditava nas teorias que viam na amálgama de raças nossa suprema degeneração. Fácil notar que Amado não só cria sua mestiçagem e a insere no corpo de seus personagens, como mistura ficção e realidade. Nilo Argolo tem inspiração direta em Nina Rodrigues, famoso professor na Escola de Medicina da Bahia, que no início do século 20 ainda defendia esse tipo de visão negativa do cruzamento. Para Nina, o País, assim misturado, não tinha futuro; já para Amado (e Pedro Archanjo) ocorria o oposto: era a mestiçagem que representava nosso "elixir". No mesmo romance, Archanjo faz uma declaração dos princípios defendidos por seu autor: "Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal foi com a miscigenação, ela é nossa contribuição para a humanidade." Contra as teorias deterministas, em voga até os anos 30, Amado compactuava com o antídoto da época modernista que mudaria a imagem do País; do pessimismo à redenção. E o literato não escaparia à orquestração do contexto, que passava por cima das profundas estratificações econômico-sociais para destacar uma sociabilidade ímpar e sem fronteiras de cor. Nesse campo, ele era mesmo um otimista da mistura. (Scwharcz, 2010)

Scwharcz faz um apanhado dos termos usados por Jorge Amado para se referir à cor de pele de suas personagens e são eles: “alva”, “brancarrona”, “bronzeado”, “cabocla”, “cafuzo”, cor de bronze”, “cor de formiga”, “encardida”, “loiraça”, “mulato claro”, “mulato escuro”, mulato quase branco”, “mulato pardo”, “negra azulada”, “pele trigueira”, “sarará”, “pálido”, “mestiço”, “tição” e “vermelho”. Tais termos hoje são considerados racistas a partir de toda a discussão dos movimentos de autoidentificação de indígenas e negros, Jorge Amado, porém está retratando a linguagem de sua época, e essa possuía tais termos. Com a nova discussão esses termos tendem a desaparecer.

Essa democracia racial de suas personagens, no entanto, não é uma coisa dada. Como é na realidade, e na ficção apesar de todo o exagero para com as relações afetuosas entre as personagens, os negros e indígenas têm o seu lugar. Paulo Rigger o demonstra em sua fala, Dona Flor nunca sairá da baixa pequena-burguesia e Archanjo dito mulato, mas negro, morre na sarjeta. Ser receptivo não significa uma mudança de “status quo” na vida das personagens Amadianas e isso é grande em sua obra, pois como Machado de Assis, ao simplesmente demonstrar a realidade e o lugar de suas personagens, Jorge Amado também está denunciando o sistema de classes que diferente do que se possa imaginar, não permite mobilidade social por ser intrinsicamente um sistema de exploração.

A democracia racial de Jorge Amado não é a democracia racial de Gilberto Freyre e merecia ter outro nome. Talvez “Brancos, negros e indígenas convivendo em harmonia”, e daí poderia se acrescentar também lutando contra toda forma de racismo, ainda que em sua época as discussões não estivessem tão avançadas. Tudo isso porque é claro que não existe “democracia” para aquele que estará sempre no lugar de marginalidade, os negros e indígenas retratados por Amado.

Do Afro ao Brasileiro em Jorge Amado.

A partir de agora será apresentado como Jorge Amado retrata as religiões de Matriz Africana em seus livros, suas personagens fazem parte da burguesia e pequena-burguesia, mas também fazem parte da classe trabalhadora, classe essa que expressa por meio de suas religiões o candomblé e a umbanda. Em “O País do Carnaval”, Jorge Amado inicia a obra da seguinte maneira, por meio da fala de Paulo Rigger:

- Hoje o feitiço domina. No Norte, senhor bispo, a religião é uma mistura de fetichismo, espiritismo e catolicismo. Aliás, eu não acredito que Cristo tenha pregado religiões. Cristo foi apenas um romântico judeu revoltoso. Os senhores, Padres e Papas, é que fizeram a religião..., mas se o senhor pensa que essa religião domina o Brasil, está enganado. Há uma falsificação africana dessa religião. A macumba, no Norte, substitui a Igreja, que no Sul, é substituída pelas lojas espíritas. No Brasil a questão de religião é uma questão de medo.

É possível notar que em sua obra, Jorge Amado faz referência a praticamente todas as religiões do Brasil. Sobretudo da umbanda e do candomblé. Em Dona Flor e Seus Dois Maridos, Vadinho retorna como um egun e é protegido por exu, orixá dos caminhos e encruzilhadas. Todo ano, Vadinho, antes de morrer fazia uma obrigação de candomblé. Além disso, no final do livro é a própria Dona Flor quem salva Vadinho das mãos dos orixás que iriam leva-lo embora devido a um ebó feito por Dona Flor.

Em “Tenda dos Milagres”, logo no prólogo há uma introdução à capoeira, às ervas e à culinária que estão relacionadas as religiões de Matriz Africana. Também Dona Flor era cozinheira desses quitutes. Archanjo e Lídio Corró, seu amigo, em “Tenda dos Milagres” são descritos como “dois exus soltos na cidade” a saírem com mulheres, jogar e fazer todas as estripulias. Também Vadinho era jogador de primeira. Jorge Amado parece ter uma preferência pelo orixá “exu” pelo tanto que o menciona e o liga as suas personagens.

Jorge Amado recorre aos ritos, sendo que em “Tenda dos Milagres” há inclusive uma cena de incorporação quando uma das personagens vai entregar seu filho, que só pensa em estudar para Archanjo. Há menção às entidades Iemanjá, Oxum, Ogum, Exu, Yansã, Oxalá e todos os demais do panteão do candomblé. O carnaval, como é sabido é descendente das religiões de matriz africana e é retratado nas três obras analisadas, seja por meio de personagens que o amam, como também de personagens que o odeiam.

Há menção às cores dos orixás, bem como às comidas que devem ser oferecidas a cada orixá. Oxalá branco, Exu vermelho e preto, Oxóssi verde e assim por diante. Jorge Amado descreve os objetos da religião, como guias e outros adereços. Ou seja, há uma verdadeira réplica de como se desenvolveu as religiões de matriz africana no Brasil e todos os seus significados. Em Dona Flor e seus Dois Maridos, quando Vadinho retorna ao mundo dos vivos começa a causar muitos problemas inexplicáveis, Jorge Amado em sua riqueza de detalhes também aponta para a hierarquia dentro do candomblé, como se vê:

E não só essas competências se assombraram. O espanto atingiu mesmo aqueles íntimos do mistério da Bahia, aqueles que o cria e o preservam, seus depositários através do tempo: mães e pais-de-santo, yalorixás e babalorixás, babalaôs e iakekerés, obás e ogãs. Nem a própria Mãe Senhora, sentada em seu trono do Axé de Opô Afonjá, nem Menininha do Gantois, com sua corte no Axé Iamassê, nem Tua Massi da Casa Branca, do venerando Axá tá Nassô, nem mesmo ela com a sabedoria de seus centro e três ano de idade, nem Olga de Yansã dançando soberba em seu terreiro de Alaketu, nem Nézinho de Ewá, nem Simplícia de Oxumarê, nem Sinhá de Oxóssi, filha de santo do falecido pai Precópio do Ilê Ogunjá, nem Joãozinho do Caboclo Pedra Preta, nem Emiliano do Bogum, nem Marieta de Tempo, nem o caboclo Neive Branco na Aldeia de Zumino Reanzarro Gangajti, nem Luís da Muriçoca. Nenhum deles pôde controlar a situação e explica-la a contento.

Toda essa nomenclatura é uma novidade e apresenta de maneira magnífica as religiões de matriz africana. Ler a obra de Jorge Amado é mergulhar por um mundo pouco conhecido, apesar de atualmente mais valorizado entre os meios de grande circulação de ideias. Muitos exemplos poderiam ser dados, de todas as personagens e por toda a obra, sendo os apresentados considerados suficientes para uma pequena amostra de como Jorge Amado apresenta sua ligação com as religiões.

Por último e não menos importante, Jorge Amado também faz menção ao sincretismo ou à conversa que houve com os três diferentes sistemas que se encontraram aqui no Brasil: o indígena, o negro e o branco. Sobre essa conversa em um trecho de “Tenda dos Milagres” ao descrever a tenda e todas as atividades que ali ocorriam, o narrador diz “(...) São Miguel e a Baixa dos Sapateiros com o Mercado de Yansã (ou de Santa Bárbara, à escolha e gosto do distinto)”. Ou seja, Jorge Amado também faz menção da mescla entre as religiões de matriz africana e o catolicismo, que resultam na umbanda.

Jorge Amado, moralidade e conclusões finais

A moralidade parece ser o grande tema que Jorge Amado trabalha em suas obras. Eis o exemplo de suas personagens Vadinho um homem considerado perdido, sem limites que bate na mulher, rouba o seu dinheiro para jogar. Dona Flor com uma moral pudica e incapaz de cometer delitos. Dr. Teodoro o exemplo do ser comedido e regrado. Paulo Rigger com seus casos de amor apenas por sexo, Archanjo também jogador. As principais personagens de Jorge Amado estão revestidas de dramas morais que hora vão para a moral ocidental cristã, ora se voltam mais à moral de origem africana, onde só há erro naquilo que o inimigo faz e não há uma dicotomia clara entre bem e mal.

Essa é a grande charada, pois Jorge Amado trabalha a moralidade no contexto iorubano, ou de religiões de matriz africana e esse segundo Hofbauer é muito distinto como se vê:

Vimos que na concepção de mundo iorubana as ideias morais, como “bem” e o “mal”, são definidas pelos contextos específicos e não podem ser entendidas como princípios dogmáticos. Não há um distanciamento, um limite rígido entre o mundo sagrado e o mundo profano. Explica-se assim, a inexistência, em ioruba, como na maioria das “línguas africanas”, de termos como “rito”, “fé” e “religião”. (Hofbauer, 2006, pg. 316)

Esse tema universal da literatura sempre foi retratado pelas grandes obras. Sobre a sexualidade, é incorreto afirmar que por serem brasileiros as personagens de Jorge Amado seriam mais dadas à sexualidade. Prova disso são os inúmeros exemplos na literatura de outros países que também possuem a questão da sexualidade e até sexo explícito como é o caso de “A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera. Defender isso, é defender uma visão estereotipada do Brasil, e não entender que a sexualidade também é um tema universal da literatura.

Sobre as críticas a Jorge Amado de em sua obra criar um estereótipo de brasileiro, maior prova contrária é Vadinho, que é um malandro branco. Considerar o universo de Jorge Amado um universo da malandragem, da vantagem é corroborar com as teorias racistas que ainda tentam ecoar. O que Jorge Amado cria são tipos, e não seria por meio da literatura que ele criaria a resposta para a humanidade, pois nem é essa a proposta da literatura.

Sobre criar ou não um discurso pró religiões de matriz africana, acredita-se que dar todo o palco para demonstrá-las é a maior prova de consolidação desse discurso. A grande literatura não se contenta em reproduzir ideias, mas sim em provocá-las, e qual outro jeito melhor de provocar a empatia para com as religiões de matriz africana, senão criando tipos que encantam e que as representam?

Referências Bibliográficas

AMADO, Jorge – Do país Carnaval – Versão online

AMADO, Jorge – Dona Flor e Seus Dois Maridos – Versão online

AMADO, Jorge – Tenda dos Milagres – Versão Online

Da MATTA, Roberto – “Do País do Carnaval à Carnavalização: o Escritor e seus Dois Brasis”. In Cadernos de Literatura Brasileira: Jorge Amado, São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1995.

HOFBAUER, Andreas - Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo. UNESP, 2006. (Cap. 5 – "Candomblé versus movimento negro?")

MOURA, Roberto - Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. FUNARTE/ INM/ Divisão de Música Popular. 1983. (Cap. "A pequena África e o reduto de Tia Ciata")

SILVA, Vagner G - Candomblé e Umbanda - Caminhos da Devoção Brasileira. São Paulo, Selo Negro, 2005, 5a. ed.

SILVA, Vagner Gonçalves da - "Exu do Brasil: tropos de uma identidade afro-brasileira nos trópicos". In: Revista de Antropologia, n. 55, vol. 2, 2012.

TROTSKI, Leon – A moral deles e a nossa. São Paulo, Edições Iskra, 2015. 1

 

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