Apertando a Mão de Cícero com Firmeza
Por: Magno F.
04 de Abril de 2017

Apertando a Mão de Cícero com Firmeza

Letras

Como Camões bem percebeu, uma ameaça a ser evitada nessa vida é a preocupação. Quando a pessoa começa a pensar nos próprios cuidados, o seu desejo está um tanto deslocado. Na gíria girardiana, a gênese desse desvio, no entanto, é o próprio modelo. Podemos também dizer que um amigo legal demais acostuma mal o outro.

É por isso, também, que certas pessoas hedonistas não merecem ser torturadas. Há nelas uma espécie de falsidade com um fundo de verdade. A divindade em que elas acreditam as ama, e elas imitam a vontade dela.  O menino mimado tampouco faz senão mimetizar mal o desejo do pai protetor, cujo erro, como lembra René Girard, não é propriamente mimar, mas sim querer que o filho seja mais feliz que os outros, o que não é possível. René Girard percebeu como poucos que a igualdade, antes de ser uma lei positiva, é uma condição básica destinada a ser superada e a ressurgir de uma maneira ou de outra.

E, quando o assunto são os casais, o fenômeno do curto-circuito volitivo tem lugar se os namorados estão fora do âmbito da serenidade. Já passou a época de flores e passeios. Um basta ao outro, e qualquer além disso é visto como supérfluo. Trata-se do estágio em que três é demais. No entanto, esse perder-se no ser do outro pode ser muito perigoso. O mar de rosas ainda é salgado: 

"Assim me vou de meu bem
 onde quer a forte estrela,
 sem alma, que em si vos tem,   
 com o mal de viver sem ela."

Que maravilha não ter o poeta claro qual é o seu bem, cujo foco oscila entre si e a amada! Para ele, tudo isso é ótimo, mas nem sempre é assim. O equilíbrio não é preservado pelas pessoas sérias que não leem poesia em quantidade bastante muito demais para sempre! Um exemplo disso foi percebido com argúcia por Rafael Falcão. Eu não tive mais do que um encontro pessoal com ele, mas sei, sim, que ele, para o bem e para o mal, não é um pessoa que coloca a política acima dos deveres de consciência. Ele talvez seja capaz de um crime horrível contra a pontualidade: deixar um amigo esperando para, sei lá, tratar com seus botões de negócios bíblicos. Para Rafael Falcón, a cultura verdadeira vem em primeiro lugar. E, nesse ponto, ele provavelmente está certo.

A vítima de sua pena é um artigo publicado pela Revista Nabuco, cujo liberalismo é prudente no cenário atual.  O assunto parece ser o sucesso do latim, algo que, comparando-se esta época com a década de 90, poderia talvez ser afirmado. Paula Corrêa, professora da USP, tem sem dúvida um mérito excepcional nesse aumento. Ela organizou - porque quis - algumas aulas numa escola pública perto do campus do Butantã. No entanto, a verdade é que, perto da ignorância geral da nação, a sua tentativa ainda precisa ser mais imitada. Posso conjecturar, porém, que ela enfrentaria dificuldade institucional para aceitar uma mão de alguém com pronúncia italiana. E não adiantaria muito lembrar que o latim, em alguns círculos, ainda é uma língua viva. De qualquer maneira, é um absurdo achar que o professorado de Letras Clássicas faz alguma diferença substancial. Ou o aluno se decide a aprender, ou nada faz com que a coisa entre na cabeça dele. Mas pensar o contrário não é mais que um ledo engano, e não há nada de errado nele.
  
O problema mesmo não está no pouco que se fez. A mentira, de fato, começa quando se busca explicar o acréscimo relativo na demanda por latim como algo que teria acontecido de cima para baixo. Trata-se, mais uma vez, da mentalidade piramidal fora de contexto. O engano em questão é achar que a língua de Roma tem voltado à moda pela proficiência didática das universidades. Nesse nível, porém, os instrutores mais gabaritados são os frios. E se só dependesse da frieza com que se analisa a gramática, o latim teria que continuar sendo uma língua morta. O método adaptado recentemente por Hans Orberg consegue resolver esse obstáculo sem cair na esparrela de baixar o nível. Para Orberg, assim como para Rafael Falcón, o latim não é uma disciplina amoral.  O ensino de uma língua não tem por quê ser neutro e se furtar a elogiar o que é bom.

O engano criticado é compreensível. Tudo começa com a crença na objetividade ingênua dos fatos sociais. No topo da pirâmide estaria não o que eu acho ser excelente, mas sim o que essa ou aquela coletividade afirma como tal. No entanto, é necessário ter um conceito crítico, que reenquadre o fenômeno irregular. A irregularidade, no caso, é o destaque de professores brasileiros de Letras Clássicas numa competição em que estariam presentes os alemães e os ingleses. É, portanto, possível que esse destaque tenha sido só uma questão de mero corporativismo, de técnica asséptica ou de ufanismo retórico.  De qualquer maneira, afirmar que algum desses elementos é responsável pela popularidade de alguma disciplina é uma opinião que, se não é provada, não chega sequer a ser um argumento. O mais provável é o que o latim sempre esteve por aí, embora alguns tenham tido vergonha dele. 

Um dos meus filhos, depois que lhe falei desse equívoco pedagógico e de Camões, disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra.  Ele talvez tenha razão. No entanto, a mim me parece que, numa visão maliciosa do assunto, o corporativismo de elogiar quem é dos nossos e desprezar uma abordagem interdisciplinar do latim é uma maneira prática de se livrar do temor romântico de "viver sem ela." Aquela cuja ausência causaria pavor é a fama. A flor do bom nome, no entanto, não poderia ser discernida num campo em que a politicagem dos louvores grupais é a norma absoluta.

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